quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Geórgia - Rússia - Ossétia

Aqui fica um bom artigo de opinião, que tirei do excelente Jornal de Defesa. Se quiserem o link d site encontra-se já aqui ao lado. É um site muito bom em termos de análise da actualidade política e também militar a nível mundial. Visitem!

Até onde irá a Rússia, depois da Geórgia
Alexandre Reis Rodrigues

Os EUA sempre se mostraram confiantes sobre o sucesso da sua política de alargamento da NATO, não obstante importantes correntes de opinião interna contrárias. Clinton foi o grande impulsionador da expansão da NATO, sob o entendimento de que a Rússia nunca abandonaria a sua postura intrinsecamente agressiva; Bush empenhou-se em continuá-la para a levar até às actuais fronteiras da Rússia. Tinha sido assumido que Moscovo se conformaria com essa inevitabilidade, por falta de capacidade de reagir para além dos protestos verbais. Os europeus, confiando nesta avaliação, não viram necessidade de se questionarem sobre a sua disponibilidade para assumirem o compromisso decorrente do artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte em relação aos novos membros; não se punham cenários de violação de fronteiras.

Estas percepções foram seriamente desafiadas com a invasão russa da Geórgia, com o provável redesenho das suas fronteiras (por se ter tornado ainda mais remota a hipótese de trazer de volta as duas províncias separatistas) e com a possível “eternização” da presença russa no país, nos termos do acordo de cessar-fogo conseguido pela União Europeia. E todos se interrogam agora sobre se a Rússia vai contentar-se em fazer parar o processo de sucessiva perda de influência nas áreas de interesse estratégico imediato ou se pretende ir mais longe, para recuperar o que perdeu anteriormente. A olhar pela forma como está a encarar as obrigações decorrentes do acordo de cessar-fogo, permanecendo em áreas que não se enquadram na caracterização de “zona tampão”, dificilmente poderão ser esperadas facilidades na procura de entendimentos, pelo menos até concluírem ter deixado claro que quem decide sobre o que fazer na área é Moscovo e não Washington nem muito menos Tiblisi.

Zbigniew Brzezinski diz que não se tratou de um incidente isolado; que a seguir vem a Ucrânia e não exclui que, em última instância, possa estar em risco a independência das antigas Repúblicas da União Soviética. Ainda que não esclarecendo que medidas concretas devem ser tomadas pelo Ocidente para evitar esta desfecho, avança, no entanto, com a ideia de que é preciso começar a levar Moscovo a sentir que está sob o risco de isolamento internacional e sugere que os EUA considerem a possibilidade de boicotarem os Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi.

Os europeus mostram-se divididos mais uma vez. Os da Nova Europa, pela voz de Mart Laar, antigo primeiro-ministro da Estónia, entre outros, também pensam que as ambições russas não vão ficar por aqui; acham que a UE não pode manter a política que tem tido para com a Rússia. Os da Velha Europa, pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros francês, mais cautelosos, procuram conciliar o seu empenho em não encarar o relacionamento com a Rússia sob uma perspectiva confrontacional com a necessidade de se mostrarem firmes na condenação da invasão e da lentidão com que Moscovo tem considerado os compromissos assumidos no âmbito do acordo de cessar-fogo; Koutchener reconhece mesmo que a Rússia se sente cercada pela NATO e tem legítimos interesses a defender. Porém, agora, com a Rússia a reconhecer a independência das duas províncias, o discurso, pelo menos durante algum tempo, vai uniformizar-se pelo da linha dura.

Os EUA, mal grado manterem a retórica de condenação frontal da postura russa, sabem que não pode arriscar com o problema da Geórgia a colaboração que necessitam da Rússia em diversos sectores críticos para a segurança, paz e estabilidade no mundo; não é apenas a questão do Irão, ou do Iraque e do Afeganistão, ou outras de natureza regional; são também os assuntos mais gerais do combate ao terrorismo internacional e da proliferação de armamento de destruição maciça, para os quais não há estratégia possível sem a Rússia.

O que fará a Rússia neste contexto ainda não se tornou claro; Dmitry Rogozin, o representante russo junto da NATO foi a Moscovo receber instruções sobre o relacionamento com a Aliança, na sequência da decisão de suspensão da cooperação no âmbito doNATO/Russia Council. As duas Câmaras do Parlamento russo também já aprovaram um pedido ao Presidente Medvedev para que reconheça a independência das duas províncias separatistas; a sugestão foi quase de imediato atendida pelo Presidente.

Há duas circunstâncias que ajudam Moscovo neste último ponto: a recusa das populações locais em voltarem á soberania da Geórgia, depois do sacrifício de alguns milhares de vidas na luta pela sua independência, sentimento agora extremado pela desastrada tentativa de Saakashvili de reunificação do país; e o paralelismo que, em termos internacionais, pode ser invocado com o precedente do Kosovo. Não obstante algumas diferenças entre as duas situações, os pontos comuns aumentaram com a intervenção do Exército georgiano, que Moscovo habilmente tem tentado explorar, caracterizando-a como tentativa de limpeza da minoria étnica que constitui a população da Ossétia do Sul (há acusações mútuas que ainda poderá demorar algum a esclarecer).

Não obstante a ”balança de dependências mútuas”, como atrás referido, ser desfavorável aos EUA, a Rússia também não está em condições de se dar ao luxo de entrar em confronto aberto com o Ocidente, de onde depende também em aspectos essenciais para o seu crescimento económico. Nestes termos, contrariamente à leitura que Brzezinski faz da nova realidade, não parece plausível que a liderança russa tenha por objectivo tentar recuperar do que Putin designou como a «maior tragédia geopolítica do Século XX», só parando quando tiver reposto a área de influência que tinha no fim da Guerra Fria.

Os rumores postos a correr pelos media russos, no final de Julho, de que Moscovo estava a preparar um regresso militar a Cuba, com a construção de uma base aérea para reabastecimento dos bombardeiros com capacidade nuclear, Tu-160 Blackjaket e Tu-95 Bear, não são um sinal de retorno a uma situação semelhante à da Guerra Fria. São, no entanto, um alerta de que a Rússia poderá reagir dessa forma à instalação do escudo de protecção antimíssil na Europa.

Moscovo deixou “pisar” sem qualquer reacção concreta algumas das “linhas vermelhas” que foi traçando nos últimos anos, mas não é provável, agora que está mais forte e confiante, que venha a desistir das duas que lhe restam: a da independência do Kosovo e a da admissão da Geórgia e da Ucrânia à NATO. É sob esta perspectiva que se interpreta o aproveitamento russo do erro grave de cálculo cometido por Saakashvili ao invadir a Ossétia do Sul; deu à Rússia a oportunidade de, numa única acção, combinar a protecção do que considera os seus interesses de segurança com a restauração do orgulho e honra feridos, na sequência da implosão da USSR.

O Kosovo tem uma importância marginal para a Rússia, quer em termos económicos, quer em termos de segurança, mas envolve uma questão de prestígio internacional e de orgulho ferido que vem desde a intervenção da NATO e se acentuou com o reconhecimento da sua independência; a Rússia sempre disse que este desfecho teria implicações na situação das duas províncias separatistas da Geórgia. O reconhecimento da sua independência por Moscovo, tal como anunciado ontem, não pode constituir uma surpresa. O eventual ingresso da Geórgia e Ucrânia na NATO insere-se sobretudo numa questão de segurança em que a Rússia não irá ceder. Estamos, portanto, num crescendo de tensões que estão a suscitar as mais sérias preocupações.

Obviamente, os EUA e a UE terão que reagir perante o reconhecimento da independência das duas províncias e a presença não justificada de tropas russas na Geórgia. No entanto, passado o período “ruidoso” que se vai seguir imediatamente, para a definição da estratégia de relacionamento a longo prazo não poderão certamente deixar de ter em conta que o objectivo final de conseguir a progressiva integração da Rússia com o Ocidente implica rever, como alguns sectores têm defendido, os aspectos da actual política que têm levado ao seu afastamento e que estão na base da actual crise.

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